segunda-feira, 31 de março de 2008

Marie estava inquieta. Já tinha mudado de roupa cinco vezes e à medida que a pilha de camisolas ia aumentando em cima da cama, mais ela se convencia de que tinha sido um engano ter aceite aquele encontro. A carta tinha sido suficientemente clara ao pedir a Peter que não a procurasse...

Tinha conhecido Peter graças à insistência de uma amiga em comum. No primeiro encontro tinha-o achado um perfeito imbecil, demasiado arrumadinho, com a vida toda programada. O seu oposto. Marie vivia ao sabor do vento. Desde que terminara o seu curso, queria apenas servir os outros, os que precisavam dela. Deixou para trás a clínica de luxo do seu pai em Bruxelas e partiu para o Quénia onde, durante um longo período, trabalhou em troca de comida. Conheceu Peter num intervalo de férias, na Europa, e apesar de o ter achado desinteressante, percebeu de imediato que aquele homem teria uma palavra a dizer na sua vida. Se lhe perguntassem o que a teria encantado, não saberia responder. Mas o que mais gostava nele era o caos interior que contrastava em tudo com o homem metódico que ele julgava ser. Apaixonaram-se aos poucos, sem grandes entusiasmos. Foi um daqueles amores perigosos, que chegam de mansinho. Quando se deram conta estavam a viver juntos. Com o seu jeito inconsequente e alegre de viver, Marie trouxe uma nova energia à existência monótona e cinzenta que Peter tinha construido, revolucionando-lhe a vida e o mundo.

quinta-feira, 27 de março de 2008

Sem olhar para trás

Resolveu sair. Não podia continuar a vegetar em cima da cama, por muito luxuoso e high-class que aquele quarto de hotel fosse. Desceu ao Polo Bar e sentou-se num dos bancos altos junto ao comprido balcão, onde um empregado aguardava clientes enquanto limpava copos, algo normal, já que àquela hora a afluência ainda era fraca. Optou por um chardonnay, não podia continuar a beber vodka pois se Marie notasse um pequeno cheiro que fosse a alcool seria brindado com um enorme sermão o tempo todo do almoço.
Lembrou aquela cara tão sorridente e em que a boa disposição e espiríto positivo eram uma constante. Um belo e longo cabelo ruivo emoldurava um rosto de pele clara, onde pontuavam pequenas sardas na zona do nariz, mas em que um belo par de olhos verde esmeralda faziam as honras. Era impossível passar por aquela rapariga sem voltarmos a cabeça com assombro e admiração. E se estivesse com a bata de médica então, a surpresa era ainda maior, já que a sua aparência tão jovem em nada deixava adivinhar alguém já formado numa profissão tão exigente.
Marie tinha uma espírito humanitário e de solidariedade tais que não deixavam de espantar todos aqueles que a conheciam. Colaborava quase ininterruptamente com ONG's e organizações e projectos de ajuda humanitária. Desde que concluíra o curso de medicina, na sua Bruxelas natal, praticamente não parara de viajar, abraçando diversas causas, desde ajuda a refugiados em África a alertas por cuasa da caça às focas no Canadá. E era por isso que, agora, mais uma vez, voltava a Lhasa, no âmbito de uma deslocação da International Federation For Human Rights (IFHR), como observadora e para pressionar o governo chinês no sentido de parar com a violação de direitos humanos no Tibete. Espero que tudo corra bem, pensou, nos últimos tempos o clima naquela zona andava bem "quente".
Acabou a bebida, deu o número do quarto ao empregado para registar o que bebera e saiu do bar. Lá fora o sol tentava furar o nevoeiro que ainda se fazia sentir e soube-lhe bem inspirar profundamente aquele ar meio húmido, meio frio.
Enterrou as mãos nos bolsos do casaco e começou a andar na direcção de Grosvenor Square. Estava quase na hora do encontro com Marie no Maze.

domingo, 23 de março de 2008

Bruxelas, 4 de Abril de 1990 (quarta-feira)

Agora que os dias começam a aumentar sinto que este desconforto de estar num local desconhecido começa a ceder a um sorriso. Nunca me tinha apercebido como o calor do sol na minha pele produz felicidade apenas por ele. E não falo das idas à Costa em que ficávamos ao sol até estarmos tão torrados quanto um frango assado.
Falo de um dia acordar de noite, triste... e no dia seguinte sorrir ao ver os primeiros raios de sol acordarem comigo. Falo de após aquela negação de mim mesmo e da minha existência a que chamo emprego, ainda ter várias horas de luz do sol para viver. Sol para andar... para ver o brilho dos seus sorrisos e de onde vêem os passos que escuto... Sol para ver o meu cabelo e pele brilharem, como se eu não fosse apenas mais um nesta capital fria.
Foi nestes dias que senti pela primeira vez saudades de Lisboa. Da sua pequenez... que permite que o sol toque os meus pés enquanto ando na rua... do tempo ameno em que o frio parece existir condicionado à noite.
Adeus aos pés frios enquanto caminho... Adeus ao vapor com que tentava fazer desenhos no céu quando saía para as ruas apenas iluminadas pelos pirilampos eléctricos, nas suas jaulas de vidro.
Talvez agora possa verdadeiramente apreciar esta capital longe de casa...

quarta-feira, 19 de março de 2008

Estendido na cama do Westbury Mayfair Hotel, vestido, apenas com os sapatos e o seu pequeno troley caído ao lado. Na mão esquerda, a carta de Marie que não largou desde o avião, na mão direita, uma garrafa miniatura de vodka roubada do mini-bar.

Pelo olhar que deita à janela vê a chuva que bate levemente nos vidros e relembra o motivo para entrar naquele quarto. As duas horas que tem pela frente, agora menos, até ao almoço com Marie, se ela aparecer. Um refúgio, aquele quarto, da vida ou da chuva. Duvida.


Um refúgio confortável, mobilado de forma sóbria e cores suaves, variando entre os tons creme e carmim. Um luxo demasiado para as suas posses mas que naquele momento lhe pareceu o apropriado.

Esvazia a pequena garrafa, sentindo um ardor na garganta, ergue o corpo e aproxima-se da janela. Do quinto andar observa a Bond Street no seu rebuliço habitual, parecendo-lhe ver em cada mulher que foge da chuva, de cabelos longos ruivos a sua Marie. Será ainda sua?

Abandona-se novamente na cama e chora convulsivamente. Pela primeira vez, desde que recebeu aquela carta, não lhe importa mais conter as emoções que o oprimem e dominam.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Procurou no bolso os comprimidos para dormir que o deixavam absolutamente inconsciente. Não os tinha tomado durante o vôo porque sabia que eram só duas horas. Mas agora, que estava quase a aterrar, apetecia-lhe desligar o cérebro por um instante que fosse... Ao mexer no bolso reparou que tinha trazido a carta, a carta dela que tinha dado origem a tudo. Releu-a uma vez mais:

"Meu bom Peter, queria tanto escrever bonito para tornar mais fácil tudo o que tenho para te dizer. Há já uns dias que ando para te falar mas falta-me a voz. O melhor mesmo é deixar-me de rodeios e escrever. Já não se usa escrever cartas, pois não? Olha, acabou. Acabou, percebes? Acabou tudo! Não quero mais. Estou cansada de vivermos assim. Quero mais. Quero-te aqui. Ou talvez não te queira aqui e isso provavelmente significa que não te quero de todo. Quero o teu sorriso rasgado e os teus olhos brilhantes mas não quero o teu sarcasmo nem o teu desencanto com a vida. Quero as tuas mãos no meu corpo e os teus lábios no meu pescoço mas não quero as tuas lágrimas durante a noite nem o teu cansaço quando acordas. Ah, se eu soubesse o que quero... Se querer-te fosse fácil... Se, se... E no entanto quero-te. Por isso parto. Vou-me embora. Parto para Lhasa dentro de três dias. Não me sigas por favor. Deixa-me ir e querer-te ao longe. Deixa-me viver na distância o que não consigo partilhar. Deixa-me enlouquecer, esquecendo-te todos os dias um pedaço. Vive! Um beijo. Dos bons."

domingo, 16 de março de 2008

Asas são para proteger...

Asas são para proteger, mas eu não quero ser protegido. Não quero nem preciso. Prefiro ser eu a proteger.
Ao recordar aquele longínquo ano de 1982 (já do século passado!) constato que já naquela altura me sentia asfixiar com tanta protecção que me queriam dar. Que diabo! Não era assim tão miúdo nem tão indefeso como me tomavam...
Por isso parti. Sem olhar para trás sequer. E não me dei mal, nada mal, de facto. Passei por muito, é verdade, mas também aprendi lições que só a escola da vida pode dar. Encontrei forças e um desembaraço que não sabia possuir. Dizem que a necessidade aguça a criatividade e disso tive exemplos sem fim.
Aquele sal que sentia na boca tornou-se, pelas circuntâncias, o sal da minha própria vida, que evoluiu de uma forma que nunca imaginei possível. Sorrio, ao lembrar a distância entre as bandas de Vilar de Mouros que faziam o cartaz daquele início dos anos 80 e a música clássica com que que o iPod me delicia agora, como mudei desde então. Sinto-o profundamente, mas sei também que, no fundo, sou ainda o mesmo rebelde, inconformista e irreverente de sempre.
Heathrow já se avista. Do aeroporto a Mayfair serão cerca de 45 minutos. Terá ainda tempo para dar uma vista de olhos pelas montras da New e da Old Bond Street antes do almoço que o levou à velha Albion. Pode ser que o passeio lhe dê alguma ideia nova que consiga convencer Marie a abandonar aquela ideia louca e voltar a Lisboa sem hesitar.
Passando as mãos pelo cabelo castanho que lhe cai para a testa, Peter poisa os olhos verdes, agora tristes e pensativos, na hospedeira que, verificando se os passageiros têm os cintos apertados, lhe surge tão parecida com aquela que, à distância de um par de horas, o aguarda naquela que pode ser a última vez que se veêm.
Maldita hora em que teria resolvido voltar para Lhasa!
Lisboa, 31 de Julho de 1982 (Sábado)

Começa hoje o Festival de Vilar de Mouros. E eu não estou lá. Mais que chateado, estou rancoroso, cheio de raiva por dentro! Raiva desta cama em que te escrevo... raiva desta caixa onde durante meses juntei notas de cem e quinhentos paus para poder ficar por lá... meses a trabalhar para poder ir! Imagina-me a mim a ouvir e a cantar e a dançar as músicas e os ideais dos meus LP´s... Os ideais e crenças de longe daqui.
Mas não... tive de ficar. Que sou muito nervoso para ficar sozinho. Que não são boas companhias. Que a viagem é longa... que a algazarra é muita.
Preso. Sinto-me preso. Quero ir para longe. Partir. Ficar por lá. Provar a todos que consigo tratar de mim sozinho. Que consigo lidar com os resultados dos meus actos e tomar as minhas decisões.
Os jovens são o futuro e tal... Que na altura da revolução não havia nada disto e que só fazem mal à juventude... Que no tempo deles se investia na liberdade e não na libertinagem. Só me apetece responder que se há futuro, não é certamente aqui, que certamente não é para mim.
Tenho a boca salgada novamente. E uma vez mais não é de um primeiro beijo.
Vou partir. Vou para longe. Contar comigo.

segunda-feira, 10 de março de 2008

Move-se de forma descontrolada e espaçada, nem a música o acalma naquele momento. Procura tranquilizar-se, aproxima-se do último controlo de embarque. Nas mãos suadas e nervosas segura passaporte e cartão de embarque, observa a polícia como inimigos que precisa de exorcizar e afastar do pensamento. O seu pequeno troley não atrai as atenções de ninguém. Da angústia ao sentimento de vazio em poucos segundos. Suores frios invadem-no, a sua pequenez ficou bem espelhada ao ser ignorado pelos polícias. Quer dar um passo em frente, mas de novo hesita. Quer gritar e afugentar os fantasmas.

O seu futuro poderá estar resolvido em poucas horas, ou simplesmente tornar-se num inferno. Relembra imagens que o consomem, aquela tarde chuvosa, naquela esquina, naquele encontrão, naquela dor aguda que não o abandona, apesar da ferida física estar há muito sarada.

Alguém passa e olha para ele, não reconhece caras, os olhos vidrados, as pernas trémulas. Embarca pela porta 18 e tenta esboçar um sorriso ao passar pela rapariga que lhe recebe o cartão de embarque. Vai deixar para trás uma Lisboa que ama, que sente como sua, que floresce numa Primavera amena, mas que o despiu de sentimentos e vontades, desde aquele dia fatídico.

Enquanto espera naquela sala cheia de gente, revê mentalmente todo o plano. Sabe que é arriscado viajar assim, sem avisar. Sabe que pode encontrar em Londres surpresas desagradáveis. Sabe que é ali que pode morrer o amor que ali começou. Assusta-se com a ideia do fim. E teme que seja tarde demais para voltar ao princípio. Os últimos telefonemas foram estranhos, confusos, evasivos. As vozes estão diferentes. As de ambos...

Faz um esforço para se abstrair destes pensamentos e concentra-se na música do seu Ipod, companheiro inseparável de viagens. Ao som do Canon em Ré Maior de Pachelbel, passa os olhos pelos outros ocupantes da sala e fixa com especial atenção uma jovem que chora em silêncio. Percebe-se-lhe a angústia no rosto. E no entanto ninguém parece reparar nela. Ou sequer importar-se. Subitamente levanta-se para lhe ir falar, mas quando se aproxima dela foge daquela sala e corre em direcção à porta de embarque. Quer partir de imediato. Sabe o que tem que fazer. E quer fazê-lo rapidamente.

segunda-feira, 3 de março de 2008

Sem Espinhas

Capítulo 1
7 da manhã. Dia já claro e eis que ele sai do prédio alto, com paredes forradas a tijolo e canteiros nas pequenas varandas. Meio tonto e ensonado, ainda, após uma confusa noite, oscilante entre sonhos e pesadelos, tem, contudo, a certeza absoluta sobre aquilo que há a fazer. Não há volta a dar. Fez como a psiquiatra, que é já como que uma amiga, lhe disse. Pensou, repensou, pôs-se na pele deste e daquele, alterou este ou aquele pormenor, mas não, não há fuga possível, apenas aquela saída permitirá resolver o problema. O que, não o deixando descansado, pelo menos, pela inexorabilidade, o faz sentir menos culpado e mais uma vítima das circunstâncias. Do mal o menos, há forças maiores do que nós, pensa para consigo.

Bastaram umas poucas semanas para ver a sua vida virada do avesso. Nunca pensou que um mero atraso para um encontro com uma amiga pudesse ter consequências tais. Mas naquela tarde chuvosa, naquela esquina, naquele encontrão, estava traçado o seu destino.

Enquanto caminha em direcção ao local onde estão estacionados os táxis, aproveita para inspirar profundamente e absorver o ar límpido da manhã de quase Primavera. Aproveita para rever o plano que delineara na véspera. Nada poderia falhar, caso contrário tudo estaria irremediavelmente perdido. E não haveria sequer segunda oportunidade, pelo que toda a cautela não seria de mais.

- Para o aeroporto, se faz favor, zona das partidas – diz ao taxista jovem que lhe abre a bagageira, onde deposita o pequeno troley onde descansam as poucas roupas de que precisará para a curta ausência que se aproxima.

Evitando a conversa de circunstância típica, liga o iPod e sintoniza uma música calma, procurando também relaxar um pouco. Precisa de estar calmo, não quer parecer nervoso nem levantar suspeitas quando passar pela polícia. Isso poderia deitar tudo a perder e é um luxo ao qual ele não se pode dar.

15 minutos depois está a pagar a corrida e a dirigir-se para os balcões de check-in. Benditos cartões acumulados, que um ou outro, lhe permitem maior conforto. Check-in pela Business Class, pequeno-almoço e espera pelo voo no VIP lounge. Menos encontrões, mais sossego e tranquilidade. Uma vez mais, tudo revê, mentalmente.

Olha para o televisor colocado alto num canto do lounge, que regista já a porta de embarque do seu voo. Às 08h15m começará o embarque. Um regresso a Londres que preferia que fosse noutras circunstâncias.